quarta-feira, 19 de junho de 2013

Desculpa o transtorno, estamos em reforma


O país todo, não só o Rio e São Paulo, está em convulsão. O chamado “Movimento Passe Livre” protesta contra o aumento da passagem do transporte coletivo. Alguns excessos cometidos por manifestantes incluem o dano à propriedade privada de pessoas que nada têm a ver com o problema. Em reação, a polícia tem usado de repressão violenta e excessiva, colocando em perigo a população que alega proteger. Há também os que ignoram a relevância desses eventos: “tudo isso só por causa de vinte centavos de diferença no preço?” Mas existem motivos de sobra para não desprezar esses eventos. Aonde isso leva? Espero que leve não ao dito “passe livre” e sim a um “país livre”. Pode ser a fagulha de um novo estágio na política brasileira. Tomara que não acabe em pizza.
Apesar da diversidade de opiniões e posicionamentos, a reflexão moral tem ficado para trás. Isso é importante, pois nem todo debate de dois lados envolve duas opiniões opostas. De um lado, manifestantes pedem um governo ainda mais agigantado. De outro, o governo se agiganta na perseguição e no uso da força. O princípio básico é o mesmo: o governo centralizado, ganancioso e usurpador, como Provedor e Mantenedor de todas as coisas. Como, então, sair desse monólogo confuso e entender o assunto com uma verdadeira distinção entre esse princípio da idolatria estatista e o princípio do “país livre”? Consideremos (1) o objeto do protesto; (2) a motivação do protesto; (3) o método do protesto; (4) a resposta ao protesto e (5) uma alternativa ao protesto.
Em primeiro lugar, olhemos para o protesto e seu objeto. Isto é, a questão do transporte coletivo e, mais amplamente, a malha de promessas não cumpridas pelos nossos governantes e os crimes que têm cometido com o dinheiro público que deveria em tese servir no cumprimento dessas promessas. O problema do transporte coletivo barato é relativamente fácil de resolver: basta o governo local desregular o setor e permitir a livre concorrência entre provedores do mesmo serviço.
Em Belo Horizonte, ainda na era do vale-transporte, a prefeitura decidiu esmagar sem dó a concorrência que começava a emergir: donos de Kombi ofereciam, em troca de vale-transporte ou dinheiro, uma carona parando em pontos estratégicos na cidade. As autoridades locais decidiram que o serviço era ilegal e inseguro. Uma campanha foi feita para expulsar essa concorrência do mercado, sob alegação de que crianças morreriam e o mundo praticamente acabaria se as Kombi continuassem circulando. Quem morreria e acabaria era a empresa semi privada que se beneficiava do monopólio do transporte coletivo na cidade. Hoje, a oferta de transporte é uniforme (ônibus do mesmo tipo, na maioria dos casos), os pontos de parada são os mesmos de sempre, a segurança é ainda mais duvidosa com ônibus lotados, e os incentivos a melhorar são praticamente inexistentes. Belo transporte público esse!
O problema do monopólio e privilégio especial concedido a uma empresa que se deita promiscuamente com o governo é um problema sério em vários outros mercados, mas é particularmente preocupante na indústria do transporte coletivo. O mesmo podemos dizer para o problema da regulação pesada que, por sua vez, acaba privilegiando a empresa do primo de alguém no governo (pense na lei dos extintores para os carros e como a indústria de extintores de incêndio aflorou). Esse é só um lado da questão. Além desse aspecto, existe também o problema do preço em si. Primeiramente, porque é um preço regulado. O que geralmente acontece é que o governo local subsidia parte do custo de modo a forçar o preço visível para baixo. Mas, como tudo na economia, existe também o lado que não se vê. Esse preço invisível é o dinheiro dos impostos que acaba sendo alocado para essa política de subsídio. Com preço regulado, a oferta do bem ou serviço deixa de ser uma resposta àquilo que é desejado no mercado e passa a ser baseada no capricho arbitrário de algum grupo de planejadores centrais. Como resultado, a oferta no final das contas é muito menor e distante da demanda, levando a ônibus lotados dentre outras consequências. E, quando a oferta é menor, a pressão do preço é de subir. A não ser que o governo mantenha a política de subsídio (cometendo o mesmo erro), cobrando ainda mais impostos (o que é impopular), tornando a situação ainda pior. Pressupondo consistência na ideologia e na política pública (e graças a Deus essa consistência não existe!), a tendência é que o controle de preços leve a mais controle, a mais problemas na relação entre oferta e demanda, levando a mais controles, numa espiral sem fim.
O problema do preço em si vai ainda mais longe da mera regulação de preços no nível local: também envolve o fenômeno da inflação no nível federal. Nossa moeda tem perdido seu valor, e parte disso se deve ao fato de que o governo federal joga mais moeda no mercado no intuito de pagar suas contas sem precisar de aumentar os impostos. Os “amigos” do governo, contratados para implementar as políticas públicas, recebem primeiro esse dinheiro, antes que ele distorça a economia. Mas, a partir de um certo ponto, essa moeda artificialmente criada vai circulando e quem oferta bens e serviços percebe que os consumidores têm muito mais moeda para gastar do que antes. Essa moeda, todavia, não afetou o processo de produção do bem ou serviço no momento inicial. Como resultado, a oferta permanece, enquanto a demanda por esse bem ou serviço aumenta. Assim, o preço sofre pressão para subir. No final, os “amigos” do governo têm a oportunidade de ter mais dinheiro em mãos com os preços iniciais, enquanto o trabalhador de salário e contrato fixos, em uma indústria menos favorecida pelo governo (ou mesmo numa indústria “livre”, se é que um mercado capitalista ainda existe no nosso país!), só recebe a proporção adicional de dinheiro indiretamente, e quando os preços mais relevantes já subiram. Assim, a inflação come o dinheiro dos pobres e transfere isso para o governo e seus “amigos”, mega companhias semi privadas que atuam fora da lógica de mercado.
Portanto, o protesto que pede “mais governo” para que haja oferta maior e mais barata de transporte coletivo está redondamente enganado no seu diagnóstico e cura proposta. O diagnóstico acusa o mercado e as empresas privadas. Mas a realidade é que essas são companhias com proteção especial do marco regulatório, isentas de competição, beneficiadas pelo dinheiro de impostos locais e em grande medida privilegiadas pelo dinheiro artificialmente gerado pela política inflacionária do governo federal. E a cura proposta? Outro engano! Quando se pede mais regulação, mais controle dos preços e mais política inflacionária de “estímulo” à economia, o tiro sempre sai pela culatra. Um incêndio não se apaga jogando querosene ou gasolina sobre o fogo! O remédio para o problema não é uma dose ainda maior do problema.
Isso é o objeto principal de protesto. Mais amplamente, protesta-se também sobre as promessas não cumpridas pelos nossos governantes e os crimes de corrupção que eles têm cometido. Muito bem: que se denunciem essas coisas com ordem e decência, com força e clareza. Lembre-se, porém, que muitas vezes o problema original não é a mentira e o perjúrio do governo, ao prometer e não cumprir – e sim a nossa leniência em permitir que prometam ficções e fábulas como essa do transporte público. Aliás, não é só que temos cruzado os braços e aturado esse tipo de bajulação populista: nossa culpa como povo é dupla, pois além de tudo nós ainda premiamos esse tipo de plataforma política com o voto e com o pressuposto de que o governo deve, pode e consegue prover esse serviço.
É interessante como a Bíblia trata um problema semelhante. Para  época das chamadas “vacas magras”, José, governante no Egito, planejou e centralizou a economia do país, monopolizando a oferta de alimento. Ele fez isso com base em informação sobre a oferta e demanda revelada por Deus em sonho, o que não é o caso para nossos planificadores do governo hoje! Apesar disso tudo, e de uma eficiência relativa, o texto bíblico retrata essa política de José usando termos duros, acusando José de ter escravizado o povo egípcio. Pense nisto: a raiz do problema não é que o governo tem prometido um serviço sem cumprir a promessa, ou sem a eficiência necessária. Em última análise, a raiz é que temos sido persuadidos de que o governo deve de fato controlar a oferta do serviço dessa forma – temos nos deixado levar pela escravidão da idolatria estatista, que vê o governo como o Criador, Provedor e Mantenedor de todas as coisas.